Diz-se que, no início, o espírito de deus pairava sobre as
águas. É claro que não faz sentido tentar encontrar pontualmente essa entidade
etérea, uma vez que acredita-se ser omnipresente. O que o livro da gênese tentou nos contar é
que esse deus nem sempre teve seu olhar voltado a esse corpo planetário que
conhecemos como nossa terra. Há bilhões de anos, quando essa esfera ainda ardia
como infernal brasa, antes que qualquer punhado de moléculas sequer
intentasse se condensar em gigantes oceanos
para que espíritos se refrescassem, deus fazia experimentos em outro canto do
universo.
Verteu o leite para fazer estrelas temperadas com os
elementos da tabela que continua a crescer. Primeira vez fazendo a receita. É
comum que se erre. A proto via láctea tinha somente um pequeno sol amarelo no centro
e um corpo menor ainda que rodopiava em torno desse. Não primou em plantar
frondosas florestas. A terra era dura e cáustica. Povoada por apenas dois
humanoides, quem deus não se deu o trabalho de colocar juntos na vasta e
desolada cobertura do bolo. Fê-los errar por anos até se encontrarem. Foi esse
o primeiro de seus jogos sádicos: ver sofrer a quem ele designara, até então, somente os pronomes 'ele' e 'ela'.
Quando se viram à distância, apertaram os olhos e com
desconfiança se aproximaram. Talvez a secura estivesse causando desvarios. Ao
se defrontarem, um confim inexplorado de seus encéfalos foi ativado. Ver o
gênero complementar ali fez aflorar o instinto mais básico de que foram dotados
e, no instante seguinte, ela estava vergada numa pedra, bramindo luxuriosamente,
enquanto ele experimentava pela primeira vez o alívio rápido que aquilo causava.
Na mente do pobre néscio, ele tinha finalmente descoberto o propósito de
existir. E talvez não estivesse errado.
A outra tentativa da mesma receita, há quem concorde, foi tão
malograda quanto a primeira. Os novos ingredientes agora não se comunicavam tão
somente com grunhidos, estavam em concentração tão alta que se esbarravam em
toda extensão da nova terra e sua maior preocupação era escolher onde nadar, agora que eram
cercados de opções.
No tempo em que não
se enroscavam, pois esse instinto não lhes foi suprimido, pensavam em como
complicar ainda mais sua existência. Estultice inerente desses pobres que
esqueciam sua prosápia. Afinal, é sempre mais salutar imaginar-se como a melhor
criação do cheff .
(Em meus estudos, notei que é sempre mais difícil descrever um
comportamento transitório. Por isso, na maioria das vezes, consideramos ideal o
universo que se observa, passando a levar em conta somente os estados inicial e
final do sistema. O transitório é, salvos casos notáveis, desprezado.
Sabemos não ser o estado inicial e, tenho quase certeza, não
seremos o final. Pergunto: Somos notáveis?)