12 de dezembro de 2012

Desarmado, desalmado, desamado

Ele estava velho. Não sabia precisar sua idade. Sua mente amargava por não ter progredido com o tempo, enquanto o resto era impiedosamente empurrado em direção ao futuro. Ao fim.  

Trazia um rosto mal escanhoado e a tez brilhante. A luz perniciosa era sugada em suas feições oleosas. Um rosto que parecia desfazer-se ao fazer-se cada vez mais soturno.

Estava só, em um dos largos cômodos de sua casa-purgatório. Um prato repousava com os restos vagamente nutritivos de seu almoço.

Seus olhos percorreram os cantos desolados e ele tentava, sem sucesso, conter a dor que vertia em forma líquida e incontrolável. Uma só pergunta lhe rasgava de dentro para fora. E se?

2 de dezembro de 2012

Indagações e definições

    Vez ou outra, me flagro fazendo perguntas em voz alta sem que haja alguém por perto para me responder. Inútil? (Repeti em bom tom enquanto digitava.) Absolutamente! Nessas ocasiões, encontro a perfeita oportunidade para ampliar o que entendo sobre aquilo que me questionei. Não há maneira mais vulgar e prolífica de se começar uma pesquisa senão por um dicionário. Assim, na manhã em que mal abri os olhos e já estava me inquirindo 'O que é que tem valor na vida?', tomei o grave e desgastado livro da estante. Suas páginas amareladas já não me tratam com empáfia. Antes eram condescendentes. Agora são amigas. Ajudam-me com meus dramas, oferecendo as verbalizações do que cruza minha mente, para que eu possa entender. Li:

'Valor, s.m. Qualidade do que tem força; valentia; coragem; esforço; mérito; preço; préstimo; papel representativo de dinheiro; significação rigorosa de um termo; duração de uma nota musical; pl. grau de aproveitamento escolar de um aluno; termo que junto a um número regula a qualificação de um exame; objetos caros; -nominal: (FIN.) valor inscrito em cada ação ou quota em que se divide o capital de uma sociedade; -venal: valor real de uma transação, ou de mercado.'.

    Resta decidir o que mais se enquadraria na descrição encontrada. Frequentemente ouço os mais velhos tratarem sobre valores como aquilo que se acumula durante a vida, a fim de se construir o caráter, e que seus valores modificam sua percepção de felicidade. Eu não ousaria sequer tentar caracterizar o que é felicidade, mas o grosso livro não teme e enuncia resoluto:
'Felicidade, s.f. Ventura; contentamento; bem-estar; boa sorte.'
   
    E complementa:

'Ventura s.f. Fortuna boa ou má; sorte; destino; felicidade; risco; acaso; perigo.'
   
    Então, minha deturpada lógica infere que, se felicidade é ventura, e ventura não encerra um significado estritamente positivo, há felicidade naquilo que pode não parecer vantajoso. Isso explica por que os valores que se tem podem alterar suas concepções. Mas começo a divergir o foco para 'os valores que se tem', enquanto a dúvida inicial era 'o que é que tem valor'.
    Passemos às variações. Tem valor aquilo que é valioso. Aquilo por que se tem préstimo, ou estima. O que se busca guardar. Todo homem quer mais e mais daquilo que tem valia, importância, para se acumular. Como os valores em si. Confuso? Sim!
    E o que é que eu mais quero guardar? Tudo que sempre me escapa por entre os dedos, não importando o quanto eu aperte os punhos. Meu tempo e meus amores. E minha incógnita felicidade. Mas nessa caótica tentativa de elucidar minhas divagações,amplio uma de minhas inestimáveis coleções. Ganho as ferramentas para fabricar amores, as armas para destruir planetas, meios de dissolver ou concitar protestos. Ganho as palavras. Seu valor se multiplica conforme agrupadas corretamente, ou mesmo quando omitidas. Seu uso permite grandes realizações.

'Palavra, s.f. Som articulado com significação; termo; vocábulo; dicção; expressão; -de Deus: o Evangelho. [Colet.: Dicionário (palavras dispostas ordenadamente e explicadas); o mesmo que elucidário, léxico, vocabulário.]'.
    A capa dura e preta me sorriu. Disse que já tenho o que preciso. O que mais tem valor está impresso atrás de meus olhos. Comichando a ponta da língua. Repousando no tampo da mesa. Surgindo do rastro de grafite. Está alcançando meus ouvidos de forma declamada. É o que mais tenho e ainda quero mais.

30 de novembro de 2012

ASCII

"The odd thing about this form of communication is that you’re more likely to talk about nothing than something. But I just want to say that all this nothing has meant more to me than so many somethings."


From 1998 - 'You've got mail'.

22 de novembro de 2012

Os maus rebentos

    Qualquer um que o observasse pensaria que ele era nada prodigioso. E estaria certo. Nenhuma de suas feições indicava a perspicácia de que tão poucos são dotados. Nunca aparentava compenetrado, mas sempre como uma TV sem sintonia. Era estática. Era um mistério.
    Quando pequeno, vivia recluso. Quando instigado a falar, era irritante. Comunicava-se com gritos e choros, purgando os ouvidos dos familiares, que acabaram aprendendo a não incomodá-lo, para se absterem da situação periclitante.
    - Esse garoto é louco - dizia o tio. Despertava o tácito assentimento da tia e a animosidade dos pais.
    - Louca é sua mãe - dizia a progenitora, e colhia olhares ominosos do marido e do tio. Todos se calavam. O garoto gritava de algum cômodo da casa: - Louca é sua mãe! Os risos enchiam a cozinha. Não agradavam a sogra, é claro, que se punha a chorar e gritar, expondo toda sua cólera, justificada pela infância sofrida.
    - Nunca me compreenderam - bravava e arfava com o rosto bonachão, vermelho e molhado.
    Ninguém percebeu a entrada do garoto enquanto tentavam abrandar a desajeitada pilhéria. Ele tomou a vó pela mão e a levou para o jardim. Sentaram-se e conversaram como nunca outro familiar havia presenciado. O estarrecimento fumegava juntamente com as panelas do almoço, e, de queixo caído, todos aproveitaram a recente paz do fagueiro domingo em família.

8 de novembro de 2012

Sapientiae

    A ação é trivial. Uma fração de segundo entre um processo infinitesimal e um resultado milesimal. O intervalo todo é tão curto que seus eventos parecem simultâneos. Click...Tap...Bow! Toda ciência desenvolvida ao longo de milhares de anos, conjugada em uma ferramenta de estarrecedora genialidade e de manuseio intuitivo. Basta empunhá-la e apontá-la para o que se quer obliterar. O pensamento é leviano demais para demorar-se na cabeça. A ação é trivial! Um pequeno esforço lançará um projétil com velocidade muito maior que a do som, deixando um breve brilho e um estampido para censurar teu feito. A ação é trivial?

18 de outubro de 2012

Heat

Seize the second
for the heat will fade
and, then, we'll shed
all our hopes away.

Once thy fears pass,
look for the right thing to say
and remind me of how
it all got carried away.

So blow the winds.
Turn the Earth.
Forget and forgive me, if you may.

But thine are the tears
that cast this sorrow
upon the bright light of my day.

1 de outubro de 2012

Voyeur

    Seus olhos tinham que ser verdes. Nada mais adequado. Aliás, tudo nela combinava perfeitamente, como se ela fosse o resultado de um algoritmo que processasse meus desejos e perversões. A compilação de minha lascívia. Com grandes e profundos olhos verdes, mergulhados em sinuosos contornos escuros, ágeis e pérfidos. Tinha os cabelos avermelhados. O tom se acentuava à luz do sol. A cor era tão viva que surpreendia haver tal combinação espectral. A pele era alva e adornada com belas sardas que despontavam de seu rosto e guiavam meu olhar até perderem-se a caminho de seus seios. Eu tinha que ver o resto.
    Não pude deixar de sorrir enquanto a despia. Estava extasiado por aventurar-me em tão bela paisagem. Beijei-a abaixo do pescoço. Ela estremeceu e aspirou profundamente. Pensei que estivesse nervosa, pois sentia seu pulso em meus lábios. Quente e rápido. Mas seu rosto cálido não esboçava o menor traço de preocupação. Era pura excitação. Uma generosa profusão química que faz ser tão positiva a resposta fisiológica que a natureza nos proveu.
    Éramos um corpo somente. Partícula isolada e em sincronia. Uma de suas mãos agarrava minha nuca e a outra vagava em minhas costas, sem encontrar onde repousar. Ela arfava nervosamente. Mal havia espaço para respirarmos. Tomávamos conta do quarto com prazer escapando pelas ventas e poros, languidamente escorrendo e encharcando os lençóis.
    Logo seus suspiros cresceram e eu a tive espástica em meus braços. Deitou a cabeça em meu peito e adormeceu. Nunca terei recompensa maior. Pude vê-la dormindo tão placidamente que até chequei sua respiração. Perscrutei minha própria consciência, a fim de ter certeza de que não estava sonhando. Ainda que estivesse... Pediria para que ela não fosse mais embora assim que despertasse. Eu tinha que ver o resto.

19 de setembro de 2012

Nós, as cargas

    Sou um amante das analogias. Nada mais engenhoso que aproximar coisas distintas e enxergar as similaridades existentes em suas definições. Faz-me crer que há uma única e absoluta verdade por trás de tudo.
    Nossos deuses e mitos, apesar de tão elaborados, são a ideia abstrata mais simplificada que alguém concebeu como resposta a fenômenos misteriosos como a vida, morte, tempo, amor... Religião e ciência fazem seu papel como par que dá as mais satisfatórias e confortáveis respostas de acordo com a demanda dos mais variados públicos. Eu sou prosélito das analogias. Das parábolas, anedotas, aforismos e adágios. Mas confesso que, às vezes, tenho que adaptar algo já consagrado como correto para que se adeque à minha ótica científica. Mera conformação. Nada que antagonize um dito como, por exemplo: Os opostos se atraem.
   É claro que uma análise leiga validaria a tese, mas o primeiro revés que aponto é que não estamos em repouso. Nesse mundo povoado por nós, as cargas, em que tudo é dinâmico, só se atraem àqueles de mesmo sinal e com movimento em sentido concordante com o nosso próprio. Até porque, ninguém tem a intenção de neutralizar-se, penso eu.

23 de agosto de 2012

Mari

Mari mora onde o mar acaba
e sempre sonha em navegar.
Não rio abaixo e oceano adentro,
mas em direção a seu par.

Mari mora onde amor é lenda
e lá todos teimam em duvidar
que a alma encontra a alma gêmea,
assim como o rio encontra o mar.

12 de julho de 2012

XXI

    Lembro-me de quando ele chegou. Estávamos há quase uma semana na praia. Família grande reunida em um rústico chalé. Tudo era coberto por aquele pó de madeira deixado pelos cupins que partilhavam a habitação conosco e , como sempre, todos tinham ares auspiciosos, típico do clima marítimo misturado com aquela época do ano.
    Eu havia passado o dia entretido com minha elaborada arquitetura de areia que era, infelizmente, sempre devastada por tsunamis inesperados. Corria atrás dos sorveteiros e fugia dos ameaçadores carangueiros esbranquiçados que sempre pinçavam meus dedos durante as obras dos túneis. À noite, surpreendentemente, havia mais energia em mim do que em um refrigerante quente e agitado, então a família saía para caminhar. Meu avô com sua solene boina e minha avó sempre comedida ao seu lado. Tios e primos sorridentes comprando crepes. Meu pai me levou para comer casquinha de siri e tomar soda. Aquela tão rara soda da garrafinha de vidro verde. Talvez essas sejam lembranças de uma criança mistificada, mas isso não importa.
    Lembro-me que a Globo exibiu Titanic naquela semana. Em duas partes  e dublado, mas isso não importa. Lembro-me que havia supersticiosos por toda parte, anunciando o iminente fim dos tempo, mas isso não importa. O que importa é que certa noite daquela semana houve muitos fogos de artifício e sorrisos e promessas, enquanto eu, tão ingênuo, não me dava conta de que um novo século se iniciara. Agora cheguei aos 21 e há novos superticiosos anunciando o iminente fim dos tempos e eu lamento não poder voltar àquele dia em que tudo na minha vida parecia perfeito. Não sou mais mistificado porque sei que não verei um novo século chegar. Mas isso não importa.

5 de junho de 2012

Equilibrium II (ironia!)

    Era uma noite de quinta-feira. O homem, desgastado pelo extenuante dia de trabalho, revirava o conteúdo de sua pasta à procura das chaves. Não tinha o hábito de carregá-las no bolso. Sob uma débil, mas ruidosa chuva, não notou a aproximação do facínora que encostou o revólver em suas costas, dizendo:
    - Abra o portão e entre em silêncio!
    - Não consigo encontrar minhas chaves. Por favor, não atire!
    - Ande logo!
    Seus dedos trêmulos percorreram o interior da pasta até esbarrarem nas chaves. Ao puxá-las, sua mão vacilou e as derrubou. O movimento brusco que fez para apanhá-las assustou o bandido, que disparou contra sua nuca e fugiu.
    Dias mais tarde, numa tentativa de assalto a banco, o mesmo criminoso foi baleado pela polícia, mas sobreviveu. A bala, porém, alojou-se em sua espinha e o privou de seus movimentos pelo resto da vida.
    O homem da pasta era um doutor e pesquisador do maior hospital universitário da cidade. Há anos vinha fazendo progresso em sua pesquisa com células tronco e, numa noite de quinta-feira, havia feito uma descoberta genial envolvendo reparação de células do sistema nervoso central, mas seus papéis foram perdidos em meio à chuva e ao sangue.


    Do outro lado da cidade, um outro cientista recebia os resultados de seus exâmes. Há tempos era fustigado por uma renitente dor de cabeça. A imagem de ressonância apresentou-lhe seu algoz. Massa sólida, malígna, inoperável!
    Conversando com seu médico e amigo, disse:
    - Será que devo atribuir minha inteligência a esse tumor?
    - Na verdade, eu diria que pela localização o tumor inutilizava parte de seu potencial. É bem provável que se você não tivesse câncer já tivesse descoberto a cura para o câncer.

11 de abril de 2012

Poema do microondas

Microondas ,
Como ousa,
Me responda,
Tomar-me 30 segundos
E devolver-me a mesma coisa?


Fome tu não sente,
Como explicá-lo todavia
A comida em cima quente
E a debaixo fria?


Por Luma Antunes.
http://www.facebook.com/#!/profile.php?id=100001315000607

7 de abril de 2012

Madallaine e os vícios

    Um estímulo externo, de origem variada, é captado por um ou mais de nossos vários órgãos sensoriais e transformados em impulsos nervosos. Esses, por sua vez, são transmitidos graças ao milagre da presença de neurotransmissores nas regiões sinápticas, alcançando o cérebro, que os interpreta e os transforma em sensações diversas. Os neurotransmissores são de tipos distintos. Sensações de euforia, saciedade e prazer são proporcionadas pela descarga de serotonina. Reiteradas descargas deixam a região responsável do cérebro mais sensível às oscilações desse neurotransmissor, assim, acostuma-se às sensações causadas. Eis, simplificadamente, a via metabólica do surgimento de um vício.
    É possível viciar-se em TUDO! Comida, jogos, lugares, substâncias químicas, pessoas... o que explica inúmeros dramas do cotidiano. O dependente pode ou não estar ciente do vício, mas a abstinência é a circunstância que causa constrangimento às vítimas, além de torná-las facilmente reconhecíveis.
    Quando conheci Madallaine, ela parecia feliz e livre de qualquer adicção. Não era! O breve ato que contracenamos juntos foi revelador em mais aspectos do que eu gostaria de admitir. Eu e ela tínhamos muito em comum. Além de graves falhas de caráter e uma renitente melancolia, éramos viciados num dos mais mortais entorpecentes conhecidos: A imaginação.
    Tanto tempo vivendo de sonhos acaba sendo frustrante, bem como nocivo. O efeito narcótico acaba e noites insones se apresentam. O êxtase é obliterado e precisamos recorrer a doses mais poderosas para superar o limiar do estímulo. Há quem diga que a imaginação não tem limites, mas na realidade, ela não é tão leniente como prega o adágio. Tive medo quando não conseguíamos mais discernir o concreto do ilusório e, é claro, culpei Madallaine. Não por me ter feito imaginar um mundo diferente, mas por não poder fazê-lo real. Eu nunca poderia ter asas. Jamais seria rico. Nem em uma vida aprenderia a tocar como o Hendrix. Nem sei se Madallaine existe, mas enfim, devo estar em abstinência. Onde estarão minhas ergotaminas?

22 de março de 2012

Equilibrium (ironia?)

    Desde que ganhamos esse ar de superioridade por termos desenvolvido nosso encéfalo e passado  a caminhar eretos, também tentamos desvendar os segredos do universo. Por hobby ou motivos filosóficos e existenciais, nós tentamos equacionar tudo, procurar validade matemática, cientificar fenômenos e espiar por detrás das cortinas do show de que somos espectadores. E nessa história os biólogos dizem que são os mais importantes, pois decifram as vias e mínimas estruturas em que há vida. E os químicos dizem ser melhores, pois todos os fenômenos biológicos são resultado de reações. E os físicos agem com empáfia, pois toda  reação química é decorrente de atrações eletrostáticas entre átomos e moléculas, enquanto os matemáticos quebram a cabeça desenvolvendo a ferramenta que impulsiona todas as ciências. Mas, apesar das rivalidades no meio acadêmico, todos parecem concordar que a culpa de tudo é de uma grandeza de difícil conceituação: A energia.
    Todas as explicações que buscamos repousam, de alguma forma, sobre os ombros dessa misteriosa entidade. Tudo busca um estado de menor energia. Menos  energia equivale a mais estabilidade, a aproximar-se de um modelo ideal e quase utópico. Para isso e por isso átomos compartilham elétrons. Para isso e por isso há convecção de massas de ar do equador aos polos. Para isso e por isso há terremotos, erupções e tsunamis. Para isso e por isso acordamos cedo, estudamos,trabalhamos e procuramos parceiros. Para isso e por isso fazemos revoluções, declaramos guerras e matamos.
    É paradoxal que todo esse dinamismo que conhecemos como vida seja baseado no litígio e no desequilíbrio, mas para aqueles consternados com a ideia, trago a notícia de que alcançaremos esse tão almejado estado de menos energia. Os mais afoitos dizem que será em 21/12/2012. Já os menos positivos estimam algo da ordem de dezenas de milhões de anos, tempo necessário para que todo o sol seja convertido em Hélio e a vida na terra seja extinta em gélida escuridão, o que ainda é um bom prospecto, uma vez que os mais alarmistas nos cedem míseros séculos até o total esgotamento de recursos naturais e a consequente grassa da anomia sobre aquilo que um dia conhecemos como sociedade civilizada.
    Enfim, são notícias alentadoras. Cumpriremos nossas funções como parte do cosmo, ainda que no mais negativo dos cenários. Mas para que o façamos com paz de espírito é necessário que não estejamos familiarizados com o conceito de entropia, senão saberíamos que mesmo depois de tudo acabado, em algum canto do universo, um planetinha recém arrefecido, com grandes mares e ozônio em alta atmosfera, alimentado de esperança por um dissimulado sol amarelo, pode aceitar a missão suicida de permitir que aminoácidos virem coacervados, e coacervados virem bactérias, e bactérias conspirem para um dia saírem dos mares e evoluírem para primatas com encéfalo desenvolvido e que andarão pela superfície do pobre planeta, cheios de hobbies e existencialismos, sem entender como e por que as coisas acontecem. Ignorância é benção!

29 de fevereiro de 2012

Prudente Boavida


                Num daqueles dias de verão, com a manhã ainda encharcada pela chuva da noite anterior, ele acordou estranhamente feliz. Empinou-se na cama, tocou o chão gelado com os pés descalços, esfregou com força os olhos e arrastou-se até a cozinha. De lá emanava um forte cheiro de café. Dora, sua vizinha, tinha a chave e todo dia trazia o pão e fazia o café. Eram bons amigos. Dora ganhava pouco como balconista no mercadinho do bairro, então, o serviço extra era bem vindo. O convívio era agradável. Se pudesse, Dora abandonaria o outro emprego, principalmente agora com os boatos de que fora assediada pelo patrão. Preferia a casa do amigo. Ele nunca se intrometia em sua vida, assim os rumores nunca se confirmaram. Sentavam-se juntos toda manhã e comiam, antes de partirem para mais um dia de trabalho. Dora sempre de banho tomado e suavemente maquiada. Ele ainda com o peso da noite nas costas.
                Seu nome era Prudente Boavida. Vivia no Rio de Janeiro, na época em que os carros ainda não eram de plástico e o centro tinha bondinho. Conhecido como PB entre os mais chegados. Não se sabe ao certo se o apelido fora dado em referência às iniciais de seu nome, ou como alusão à mistura de cores de sua pele em contraste com o terninho que costumava vestir. Fazia pilhéria de tudo, mas tinha um olhar soturno e vazio. Ficava evidente que estava buscando alguém com quem estar para sempre junto.
                Assim que Dora saiu, começou a arrumar-se. Chegaria, novamente, atrasado ao emprego. Um hábito cada vez mais comum, mas sem muito importância. Não era notado na firma. Era somente o rapaz do almoxarifado, há tempos conformado. Ganhava o suficiente para pagar seu aluguel , fazer as compras do mês e ajudar Dora.
                No trabalho, sentia que utilizava melhor o seu tempo pensando no futuro. Tinha pauta organizada. Nos primeiros  quinze minutos revisava os tópicos. Uma hora para planejar o que faria quando chegasse em casa, outras duas para arquitetar o fim de semana e ,depois do almoço, já enfastiado e com o sono tomando conta de cada centímetro de seu corpo, pensava em que rumo daria à sua vida. Sua surpresa foi ter Dora pairando em sua mente. Parada e tácita em sua cozinha, ao lado do bule de café. Ah, o trescalante aroma do café! Como é que pode ser tão obtuso, durante tanto tempo? Agora tinha certeza. Queria casar-se com Dora!
                Deixou a firma mais cedo e correu para casa, aguardar impacientemente pelo café da manhã seguinte. Já estava acordado quando ela chegou. Não dormira, na verdade. Antes mesmo que Dora encostasse a porta, disse:
                - Precisamos conversar!
                -Ai, que susto, PB. Bom dia para você, também!
                - Dora, tenho que confessar...
                Entreolharam-se sorumbáticos, brevemente, como dois mentirosos.
                -Acho que te amo! Disseram ao mesmo tempo.
                Combinaram que fugiriam juntos. Casariam-se na praia, longe de boatos e repreensões alheias. Fariam de tudo para conseguirem. Beijaram-se longa e calorosamente. Um beijo temperado pelas lágrimas de Dora. Alegria verdadeira.
                Num outro daqueles dias de verão, com as ruas ainda encharcadas pela chuva da noite anterior, Prudente Boavida acordou estranhamente feliz. Agarrou a bagagem que havia preparado e correu para o terminal rodoviário, onde esperaria por Dora. Tinha duas passagens na mão e um sorriso bobo na cara. Três horas depois, tudo já estava seco e Dora ainda não havia chegado. O sol cáustico, refletido no concreto claro, parecia querer cegá-lo e desmaiá-lo. Buscou uma sombra e continuou a esperar. Lá pela hora do almoço, suas mãos contraíam-se involuntariamente e seu estômago o fez parar de pensar em Dora. Quando começou a chover, resolveu ir para casa.
                Ela não foi vê-lo durante a semana toda. Prudente começou a sentir fortes tonturas e a ter suores noturnos. Dora nunca apareceu! Antes de chegar o carnaval, Prudente pereceu. Não viu mais a alegria e as cores do desfile de sua querida escola. Não provou o café da amiga amada uma última vez. Pobre PB, pensavam tristemente os amigos e familiares, quando todos foram tomados pela visão de uma moça que adentrava a capela. Vestia um véu preto para esconder os olhos vermelhos e inchados. Em rebuliço, todos apontavam e diziam: É ela! Dora aproximou-se, perdeu a firmeza nas pernas e debruçou-se sobre o caixão. Chorou com furor. Prudente tinha todos os sintômas de um desencanto e morreu de um desamor.

28 de janeiro de 2012

Infamar

Não. Eu não sou perfeito!
Eu não guardo datas,
não sei do que sou feito,
me perco nas horas
e não sei pra onde olhar.
Não sei como te tocar,
fico distante às vezes.
Não te dei o paraíso.
Eu perdi todo o juízo.
Não. Eu não sou perfeito!
Eu não liguei pras datas,
fui feito de carne e osso,
cheguei atrasado,
só olhei pro seu rosto,
te abracei com medo,
te segurei tão perto,
só me entreguei por completo
E você me deixou louco.
Não. Eu não sou perfeito!
Porque pra mim é pouco.
Quero mais de você em um dia.
Quero te dar cada estrela .
Que você seja sempre só minha.
Que o mundo todo veja.
Não!
Não sou perfeito,
mas ainda tento.
Um dia eu aprendo.
Vou me lembrar de tudo.
E ver pra quem fui feito.