29 de fevereiro de 2012

Prudente Boavida


                Num daqueles dias de verão, com a manhã ainda encharcada pela chuva da noite anterior, ele acordou estranhamente feliz. Empinou-se na cama, tocou o chão gelado com os pés descalços, esfregou com força os olhos e arrastou-se até a cozinha. De lá emanava um forte cheiro de café. Dora, sua vizinha, tinha a chave e todo dia trazia o pão e fazia o café. Eram bons amigos. Dora ganhava pouco como balconista no mercadinho do bairro, então, o serviço extra era bem vindo. O convívio era agradável. Se pudesse, Dora abandonaria o outro emprego, principalmente agora com os boatos de que fora assediada pelo patrão. Preferia a casa do amigo. Ele nunca se intrometia em sua vida, assim os rumores nunca se confirmaram. Sentavam-se juntos toda manhã e comiam, antes de partirem para mais um dia de trabalho. Dora sempre de banho tomado e suavemente maquiada. Ele ainda com o peso da noite nas costas.
                Seu nome era Prudente Boavida. Vivia no Rio de Janeiro, na época em que os carros ainda não eram de plástico e o centro tinha bondinho. Conhecido como PB entre os mais chegados. Não se sabe ao certo se o apelido fora dado em referência às iniciais de seu nome, ou como alusão à mistura de cores de sua pele em contraste com o terninho que costumava vestir. Fazia pilhéria de tudo, mas tinha um olhar soturno e vazio. Ficava evidente que estava buscando alguém com quem estar para sempre junto.
                Assim que Dora saiu, começou a arrumar-se. Chegaria, novamente, atrasado ao emprego. Um hábito cada vez mais comum, mas sem muito importância. Não era notado na firma. Era somente o rapaz do almoxarifado, há tempos conformado. Ganhava o suficiente para pagar seu aluguel , fazer as compras do mês e ajudar Dora.
                No trabalho, sentia que utilizava melhor o seu tempo pensando no futuro. Tinha pauta organizada. Nos primeiros  quinze minutos revisava os tópicos. Uma hora para planejar o que faria quando chegasse em casa, outras duas para arquitetar o fim de semana e ,depois do almoço, já enfastiado e com o sono tomando conta de cada centímetro de seu corpo, pensava em que rumo daria à sua vida. Sua surpresa foi ter Dora pairando em sua mente. Parada e tácita em sua cozinha, ao lado do bule de café. Ah, o trescalante aroma do café! Como é que pode ser tão obtuso, durante tanto tempo? Agora tinha certeza. Queria casar-se com Dora!
                Deixou a firma mais cedo e correu para casa, aguardar impacientemente pelo café da manhã seguinte. Já estava acordado quando ela chegou. Não dormira, na verdade. Antes mesmo que Dora encostasse a porta, disse:
                - Precisamos conversar!
                -Ai, que susto, PB. Bom dia para você, também!
                - Dora, tenho que confessar...
                Entreolharam-se sorumbáticos, brevemente, como dois mentirosos.
                -Acho que te amo! Disseram ao mesmo tempo.
                Combinaram que fugiriam juntos. Casariam-se na praia, longe de boatos e repreensões alheias. Fariam de tudo para conseguirem. Beijaram-se longa e calorosamente. Um beijo temperado pelas lágrimas de Dora. Alegria verdadeira.
                Num outro daqueles dias de verão, com as ruas ainda encharcadas pela chuva da noite anterior, Prudente Boavida acordou estranhamente feliz. Agarrou a bagagem que havia preparado e correu para o terminal rodoviário, onde esperaria por Dora. Tinha duas passagens na mão e um sorriso bobo na cara. Três horas depois, tudo já estava seco e Dora ainda não havia chegado. O sol cáustico, refletido no concreto claro, parecia querer cegá-lo e desmaiá-lo. Buscou uma sombra e continuou a esperar. Lá pela hora do almoço, suas mãos contraíam-se involuntariamente e seu estômago o fez parar de pensar em Dora. Quando começou a chover, resolveu ir para casa.
                Ela não foi vê-lo durante a semana toda. Prudente começou a sentir fortes tonturas e a ter suores noturnos. Dora nunca apareceu! Antes de chegar o carnaval, Prudente pereceu. Não viu mais a alegria e as cores do desfile de sua querida escola. Não provou o café da amiga amada uma última vez. Pobre PB, pensavam tristemente os amigos e familiares, quando todos foram tomados pela visão de uma moça que adentrava a capela. Vestia um véu preto para esconder os olhos vermelhos e inchados. Em rebuliço, todos apontavam e diziam: É ela! Dora aproximou-se, perdeu a firmeza nas pernas e debruçou-se sobre o caixão. Chorou com furor. Prudente tinha todos os sintômas de um desencanto e morreu de um desamor.