8 de setembro de 2013

Olho de gato

    O último integrante dessa casa, por ordem de chegada, é um gato. Mel tem o pelo preto e branco, pança cultivada ao longo de uns 10 anos, tenros bigodes e intimidadores olhos amarelos. Sua carência por atenção excede o nível que em humanos seria classificado como desespero e , como efeito imediato, seus miados chorosos frequentemente  interrompem a calmaria de nosso sono. Mas Mel é um gato e sua fofice derreteria o coração dos mais empedernidos.  

    À noite, quando cada um se enclausura em seu quarto para dormir, ele faz uma breve visita como seu honesto desejo de "boa noite e acorde logo para me dar mais comida", mas há algo em minha alcova que o faz demorar-se ligeiramente mais. O suficiente para que eu crie vontade de expulsá-lo.


    Todos esses conhecidos maneirismos fazem ser impossível não notar quando algo está diferente. Como quando ele veio e sentou-se em frente a minha cama, fitou-me longamente enquanto eu tirava as botas e depois esfregou-se com deleite pelos cantos. Tornou a mim para que eu o alisasse e depois me encarou com uma estarrecedora nova expressão. Era tristeza. Era angústia. Parecia ter vindo despedir-se. Naquele dia perdi o sono. Quem estaria partindo? Eu ou ele?

10 de junho de 2013

Saiaço

Eu tenho um rosto!
De que importa o resto?
Quero respeito pelo gosto,
E não que gostem do que visto.

Se andar de saia for um risco,
Ou se é ofença o seio exposto,
Prefiro ser culpado disso.
Ofende mais usar cabresto.

Esse uniforme indigesto
Deforma o corpo em que existo.
Mas ainda tenho um rosto!
De que importa o resto?

13 de maio de 2013

Quer pagar quanto?


                Nós o compramos quando mudamos de casa pela primeira vez. Eu tinha cinco ou seis anos. A nova casa era espaçosa e a sala tinha dois ambientes bem amplos. Cenário convidativo para a compra de mobília. Um de dois e um de três lugares. O novo sofá deveria refletir o suposto período de prosperidade que nossa família teria pela frente. Ninguém pensava em feng-shui. Estávamos nos adequando ao padrão da classe média da época, gastando dinheiro que não tínhamos, tentando preencher com tralha os vazios que um mau relacionamento tem. Mas o novo sofá havia chegado, com suas almofadas pesadas e envoltas num couro marrom, sintético e áspero que nunca me agradou.
                As contas se tornaram prioridade. A dispendiosa mensalidade escolar, minha e da minha irmã, somada ao aluguel e às compras do mês resultava em gente dispersa pelos cantos da cidade. Os pais labutando o sustento da experimental família, os filhos nutrindo  as mentes e caminhando com passos largos ao incerto fututo, a caríssima sala vazia e o gato desfrutando o novo sofá. Mas, à noite, a figura toda se transformava. A hora da janta era marcada como o período de se exercitar nosso apego, com lista rígida de tarefas a serem realizadas, como jantar juntos, demonstrar interesse na vida dos outros habitantes dali, ensaiar afeto e, é claro, apertar a família inteira em um único sofá, para a dose de horário nobre. Depois dormíamos satisfeitos com o incipiente progresso. As coisas melhorariam! (?)
                Não demorou muito para que a trilha sonora esmorecesse bastante. Os habitantes da casa foram diminuindo. Exceto os gatos, que eram repostos regularmente. Mas o sofá persistiu. Enfrentou estoicamente mais duas outras casas. Cerca de treze invernos, permeados por percalços financeiros, mas nunca um retrocesso. Todos ainda estávamos crescendo e abarrotados no sofá que testemunhou nossa emergência. Tamanhas as conquistas que o sofá agora é outro. Num tom de ótimo gosto, assentos retráteis e um chaise-longue. Espaçoso e acolhedor. Ironicamente, quando reunidos, ainda nos amontoamos num só canto dele. Um observador externo diria que é para sentirmos o calor que nos manteve juntos. Eu acho que a TV é pequena.

24 de março de 2013

Devaneio


Irmãos e irmãs,
Paranoicos e parafílicos,
Criadores e criaturas,
Sarcásticos e cínicos...

Uni-vos, urdi-vos, urgi-vos...

É só o tempo o nosso inimigo.

O passado assassinou o agora
E o futuro é desconhecido.

Uni-vos, urdi-vos, urgi-vos...


8 de março de 2013

Elas


Uma formiga só,
Ou uma só formiga?
Subindo o pé da mesa,
Esgueira e em fuga.

Eu tento esmagá-la
E ela me suplica:
Sou uma formiga só.
Sou uma só formiga!

Depois, quando volto,
Ela está com uma amiga.
Subindo o pé da mesa
Atrás de mais comida.

Seja como for,
Há sempre quem a siga.
E uma segue a outra,
Sem discussão nem briga.

Mato uma por uma
Até que alguma diga:
Não faça isso comigo,
Sou só uma formiga!

Piedoso a deixo ir,
Mas sempre volta a maldita.
Nunca mais eu deixarei
Que alguma fuja com vida!

6 de março de 2013

Humor e liberdade em risco



    O evento, que tem como principal interesse promover a interação entre ingressantes na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, conhecido como Integrapoli, tem esse ano, bem como em outros, revoltado o público que é incapaz de compreender seu teor lúdico e jocoso. É notável a renitência de temas semelhantes a esse nos últimos tempos. Comediantes como Rafinha Bastos e Daniel Gentili são alvo de ataques e repúdio de uma miríade de grupos, dado seu 'humor controverso'.

    Os itens da lista que despertaram o furor de alguns fazem, sim,  alusão à temática sexual e exploram uma difusa imagem do universo feminino (confesso que a mais tacanha), mas são apenas uma pilhéria e me entristece ver que esses tabus criam um enfrentamento de proporções exacerbadas, simplesmente pois as percepções das pessoas, naturalmente,  destoam .

    Compreendo que o proposto é tido como ofensivo e machista e posso dizer que, ao elaborar aqueles itens, os organizadores do evento não tiveram a postura mais sensata, mas, vale lembrar que muitas sátiras são erigidas sobre temática afim, ou não era Gregório de Matos quem fazia sonetos em que freiras faziam sexo, descrito da maneira mais chã possível?!

    O que quero defender é que, ao tentar cercear uma ideia ou opinião, tentando conformar todos os pontos de vista ao seu próprio, esses revoltosos estão agindo de maneira fascista. Repreender  uma forma de expressão como o humor é só um modo de tornar o mundo todo num lugar cinza, intolerante e involuído e, enquanto não houver leniência às mais diversas expressões, haverá nichos ditatoriais de machistas, feministas, fanáticos religiosos, homofóbicos e tudo que macula e fere, física e psicologicamente, a sociedade.

3 de março de 2013

Dia Maria


Ô Maria dadivosa, onde vais essa manhã?
Com sua boca cor de rosa, o seu jeito de vilã.
Como andas caprichosa, em seu caminho de flores,
Ô Maria, quantas notas, tantas voltas e amores.

Ô Maria vaidosa, quero um pouco desse mel.
Me engana com seu cheiro, finge que é fiel.
Como mente essa Maria, só enquanto ninguém vê.
Ô Maria, aguarda o dia em que o céu irá escurecer.

Ô Maria duvidosa, como faço pra te ter?
Deixa de ser mentirosa, não dá mais pra esconder.
Ora diz que não quer nada, depois vem me abraçando.
Ô Maria, cuidado, olha seu marido chegando.

Caipiras


Um tio dizia
Que viviam na fartura,
Pois fartava dinheiro e fartava comida.

Minha bisavó
Queria ser crente,
Para poder sarvar a arma.

E minha avó
Diz para não por sar demais na comida
Que senão faz mar.

E naquela cidade,
Onde tenho nutrido minha veia caipira,
Todos tão simples,
Vivem cobertos de razão.


1 de março de 2013

New love


Come and lay beside me now.
We are the whole that once was part.
Rest on my shoulder, my blue girl.
Know that I'll keep you in my heart.

As we look up to multitude.
And this new love is ours to start.
Rest on my shoulder, my blue girl.
Not now or ever I'll depart.

10 de fevereiro de 2013

Eiowl

Se você estivesse aqui,
Te provocaria como nunca.
Beijaria seu corpo.
Eu te abraçaria.

Se você estivesse aqui,
Te faria outra música.
Tocaria seu rosto.
Eu te amaria.

Mas sou pequeno.
Eu não tenho o alento
Pra te ter o tempo todo
E poder te amar todo dia.

Eu sou ingênuo.
Nunca sei o que faço.
Se te beijo ou te abraço,
Ou se te levo pra cama.

Enquanto você diz que me ama
E a gente brinca de fazer amor.
Enquanto o resto do mundo dorme
E eu fico com seu calor.

Se você estivesse aqui,
Eu não estaria tão triste,
Pois há algo em mim
Que só você sabe que existe.

Há algo em mim
Tão forte que transborda
Em lágrimas e sangue
Até que você me acorda.

1 de fevereiro de 2013

Só e mal acompanhado

    O artista entrou em seu quarto com o mais pesaroso dos ares. O dia estava doendo. Nos pés. Na cabeça. No coração. Foi o resultado de andar pensando nela.

    Estava quente e uma plateia de insetos se formava em torno de sua lâmpada. Zumbiam em exagerado rebuliço, esperando presenciar o momento de uma nova criação. O que seria? Uma música? Um poema?

    Tomou seu instrumento e o sentou em sua perna. Ensaiou tangê-lo, mas seus dedos vacilavam. O dia estava doendo. Observou os artrópodes que espectavam, agora acomodados nas paredes e teto.

    O artista levantou-se e apagou a luz. Sentou-se no escuro por alguns minutos. Um a um os insetos deixaram o lugar, decepcionados pela ausência de brilho e calor e o artista sentia falta dos zumbidos. No silêncio e no escuro era mais fácil lembrar de tudo que não estava ali.