5 de março de 2014

Apócrifo

    Diz-se que, no início, o espírito de deus pairava sobre as águas. É claro que não faz sentido tentar encontrar pontualmente essa entidade etérea, uma vez que acredita-se ser omnipresente.  O que o livro da gênese tentou nos contar é que esse deus nem sempre teve seu olhar voltado a esse corpo planetário que conhecemos como nossa terra. Há bilhões de anos, quando essa esfera ainda ardia como infernal brasa, antes que qualquer punhado de moléculas sequer intentasse   se condensar em gigantes oceanos para que espíritos se refrescassem, deus fazia experimentos em outro canto do universo.

    Verteu o leite para fazer estrelas temperadas com os elementos da tabela que continua a crescer. Primeira vez fazendo a receita. É comum que se erre. A proto via láctea tinha somente um pequeno sol amarelo no centro e um corpo menor ainda que rodopiava em torno desse. Não primou em plantar frondosas florestas. A terra era dura e cáustica. Povoada por apenas dois humanoides, quem deus não se deu o trabalho de colocar juntos na vasta e desolada cobertura do bolo. Fê-los errar por anos até se encontrarem. Foi esse o primeiro de seus jogos sádicos: ver sofrer a quem ele designara, até então, somente os pronomes 'ele' e 'ela'.

    Quando se viram à distância, apertaram os olhos e com desconfiança se aproximaram. Talvez a secura estivesse causando desvarios. Ao se defrontarem, um confim inexplorado de seus encéfalos foi ativado. Ver o gênero complementar ali fez aflorar o instinto mais básico de que foram dotados e, no instante seguinte, ela estava vergada numa pedra, bramindo luxuriosamente, enquanto ele experimentava pela primeira vez o alívio rápido que aquilo causava. Na mente do pobre néscio, ele tinha finalmente descoberto o propósito de existir. E talvez não estivesse errado.

    A outra tentativa da mesma receita, há quem concorde, foi tão malograda quanto a primeira. Os novos ingredientes agora não se comunicavam tão somente com grunhidos, estavam em concentração tão alta que se esbarravam em toda extensão da nova terra e sua maior preocupação  era escolher onde nadar, agora que eram cercados de opções.

    No tempo em que não se enroscavam, pois esse instinto não lhes foi suprimido, pensavam em como complicar ainda mais sua existência. Estultice inerente desses pobres que esqueciam sua prosápia. Afinal, é sempre mais salutar imaginar-se como a melhor criação do cheff .

    (Em meus estudos,  notei que é sempre mais difícil descrever um comportamento transitório. Por isso, na maioria das vezes, consideramos ideal o universo que se observa, passando a levar em conta somente os estados inicial e final do sistema. O transitório é, salvos casos notáveis, desprezado.
Sabemos não ser o estado inicial e, tenho quase certeza, não seremos o final. Pergunto: Somos notáveis?)